terça-feira, 18 de agosto de 2009

Multiculturalismo, Interculturalidade e Educação

Se é verdade que “somos humanamente configurados para e pelos nossos semelhantes”[1] ou, de outro modo, se a “humanidade é algo que depende em boa medida do que fazemos uns com os outros”[2], como, aliás, nos provam os casos de meninos selvagens, então, não é menos verdade aquilo para que Hans Küng nos chama a atenção na sua obra “Projecto para uma Ética Mundial”, a necessidade de nos relacionarmos com toda a ecúmena, isto é, com todo o mundo habitado, sem distinção de sexo, idade, cor, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social. Com efeito, precisamos de todos para tentar dizer melhor, “embora na gaguez quase muda”[3], aquilo que somos. “Gaguez quase muda” porque “a vida, ela toda, é um extenso nascimento”[4]. O homem, tal como a cultura, por mais que se complete, está sempre em aberto, ou seja, deixa sempre algo por dizer ou por ouvir, está, constantemente, em construção e no único momento em que poderia dar a obra por concluída já não o pode fazer porque o não pode dizer, ou seja, está morto. De outro modo e para utilizarmos a terminologia de Kuhn, acerca dos paradigmas, o homem, e tudo o que dele resulta, é incomensurável, ou seja, está em eterno devir.
Ora, por tudo isto, é evidente que as noções de “identidade(s) refúgio” e “identidade(s) tribais” não fazem qualquer sentido e que a ideia de cultura como fronteira, linha que separa o dentro e o fora, está completamente obsoleta. Nós somos uns com os outros, fecharmo-nos, isolarmo-nos dos ou de alguns outros é uma atitude assassina, que mata algumas das possibilidades de ser.
A melhor palavra para traduzir a existência humana é a de “mestiçagem”, isto porque este termo nos remete para a ideia “do ser lapso e carente que só se realiza num processo infinito de encontro com os outros”
[5] e para experiências que, nas palavras de François Laplantine e Alexis Nouss, são de desapropriação, ausência e incerteza. O mundo, hoje, é um espaço que deve ser visto “como uma estrutura reticular em que se circula”[6], isto é, hoje, temos que ter bem claro que “não se mora, viaja-se e viaja-se num tempo e num espaço globais”[7] e que é nele que se forma a nossa identidade que, como nos diz Amin Maalouf, é compósita e se caracteriza por múltiplas pertenças. O homem, como no-lo lembra a ideia de topopoligamia de U. Beck, está “casado com vários lugares e pertence simultaneamente a vários mundos”[8]. Hoje, mais importante do que as raízes, que nos conduzem à terra onde o homem apodrece, como lembra Amin Maalouf, são as estradas que pelo seu entrecruzamento nos levam à constituição dos nossos traços identitários.
Acerca desta necessidade que o homem tem de ser com os outros, Küng não esquece de dizer que só seremos, só sobreviveremos, se no mundo em que vivermos “não coexistirem, durante muito tempo, espaços éticos dispares, antagónicos e até mesmo rivais”
[9]. O mundo necessita de uma ética de base que, como a de Küng, não esqueça:
• “o que pressupõe a paz interna no seio de uma pequena ou grande comunidade? – Resposta: a concordância colectiva acerca da vontade de resolver os conflitos sociais sem o recurso à violência;
• o que pressupõe a existência de uma ordem social e económica? – Resposta: a concordância colectiva acerca da vontade de respeitar uma dada forma de organização social e determinadas leis;
• O que pressupõem as instituições que encarnam tais formas de organização e que, não obstante, estão constantemente sujeitas a transformações históricas? – Resposta: uma vontade colectiva, pelo menos implícita, de as continuar a manter
[10].
Por outras palavras, Küng considera importante um comprometimento global, com uma cultura da não-violência, o respeito pela vida, a solidariedade, a justiça, a tolerância, a veracidade (não mentirás: fala e age com verdade) e a igualdade de direitos com irmandade ou, atrever-me-ia eu a dizer, hospedagem.
Mas, atenção, quando se fala na necessidade de uma ética de base, não se está a dizer que a humanidade carece de uma religião ou ideologia únicas ou unificadas. O que se quer significar, isso sim, é que o homem e o seu mundo necessitam de um conjunto de normas, valores, ideias e objectivos que promovam a dimensão relacional intrínseca à natureza humana. No fundo, o que se exige é uma das mais antigas regras de ouro: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti ou, para utilizar a fórmula positiva, faz aos outros o que queres que te façam a ti e, para isso, não te esqueças de aprender a ver a realidade, também, com os olhos do outro e de ajudares o outro a ver a tua com os teus olhos.
Esta interdependência entre o eu e o tu, para não falar de outras realidades, como a necessidade de preservar o planeta para as gerações vindouras, exige o abandono de atitudes etnocêntricas e relativistas e a adopção de modelos de acção profiláticos da humanidade que tenham por base a interacção, a integração, a compreensão, o respeito, a responsabilidade perante e pelo outro, o cuidado, o afecto e a colaboração/cooperação, é dizer, que acentem num diálogo autêntico que pressuponha a utilização de linguagens de compreensão mútua. De facto, não é possível resolver os problemas actuais senão for por meio da cooperação e isto, por sua vez, não consegue lugar sem a capacidade de ver pelos/com os olhos do outro. O que valem as acções de um país, sozinho, perante realidades como o aquecimento global ou necessidades como a dos quatro erres (reduzir, reciclar, rejeitar e reutilizar)? Tais fenómenos só poderão ser enfrentados com a ajuda de todos. As atitudes de fechamento e isolamento, bem como a ideia de que eu sou melhor do que tu, não fazem mais sentido. É urgente que o homem queira ser pessoa autêntica e, com isso, queira evitar o mal e praticar o bem aos seus e aos olhos do outro. As pretensões de verdade absoluta devem ser substituídas, como diz J. Masía e R. Panikkar, pelo diálogo dialógico (desejo de verdade) e não dialéctico (baseado numa razão unívoca e ditatorial/certeza de verdade), o que, no campo religioso, equivaleria, por exemplo, ao reconhecimento, tanto por parte do cristão como do budista, que “Deus”, o “Nada” ou o “Vazio” “teriam de estar para lá do Deus Cristão e para lá do Nada e do Vazio budistas”
[11]. Mas atenção, esta “luta pela igualdade não implica o esquecimento das diferenças (…). Como refere Boaventura Sousa Santos (…): temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”[12]. O reconhecimento da diferença é a condição necessária para garantir uma igualdade mais profunda. O canibalismo cultural não pode ter lugar num mundo em que o diálogo cultural é a condição da humanidade.


Sónia Rodrigues
27/07/2009

[1] Savater, Perguntas da Vida, p. 194.
[2] Savater, Ética para um Jovem, p. 65.
[3] Anselmo Borges, Separata Igreja e Missão, p. 353.
[4] Mia Couto, Cada Homem é uma Raça, p. 121.
[5] João Maria André, Identidades… p. 15.
[6] João Maria André, Interpretações p. 2.
[7] João Maria André, Interpretações p. 2.
[8] João Maria André, Interpretações p. 31 (adaptado)
[9] Hans Küng, Projecto para uma Ética Mundial, p. 11.
[10] Hans Küng Projecto para uma Ética Mundial, p. 60 e 61.
[11] Anselmo Borges separata, p. 354.
[12] João Maria André, Interpretações… p. 28.

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